Para estreia de Mariana Rey Colaço Robles Monteiro, escreveu o Sr. Dr. Júlio Dantas uma peça inspirada nos trágicos gregos e, como se diz no programa, em especial na Antígona de Sófocles. O mesmo tema já o tratara em português António Sérgio e, ao fazer reviver o conflito humano e moral dos grandes mitos clássicos, o Presidente da Academia das Ciências toma lugar entre os dramaturgos contemporâneos que têm em Giraudoux senão o melhor pelo menos o mais conhecido representante. Mas enquanto nas mãos de Giraudoux Anfitrião e as damas de Troia falam por uma boca em que dificilmente se disfarça o sorriso mais agudo da ironia, Zeus e Penélope mascararam na elegância das túnicas e das sandálias uma humanidade que sentimos contemporânea, na peça de Júlio Dantas nenhuma intervenção do autor transplanta de Tebas o conflito de Antígona, senão talvez a justiça da sua moral imutável.
A tragédia desenvolve-se portanto dentro da fórmula académica e desenvolve-se teatralmente muito bem como era de esperar. Não aceitasse como aceita o Sr. Dr. Júlio Dantas esta ideia tremebunda de que entre as colunas dum palácio grego, com um vaso de essências, com uma catana ou com um báculo na mão, uma rapariga, um soldado ou um velho tebano só podem exprimir-se em longos tropos e floreando de imagens os seus dizeres jubilosos ou amargurados, a peça seria mesmo uma peça boa. Fosse ela representada de outra maneira e, mesmo como está, tivessem os actores o cuidado de apaziguar na dicção o que de convencionalmente literário aflora no diálogo, não seria o caso para não dar palmas e para não sair satisfeito do Teatro Nacional. O pior é que tudo se passou exactamente ao invez!
Certamente por artes do ensaiador, todos aqueles catorze tebanos falantes da Antígona estavam possuídos de delírio grandiloquente, e a tal ponto o estavam que mesmo quando Egeon anuncia que se aproxima a manhã, logo ao comêço do primeiro acto, o espectador tem a convicção de que aquela frase, tão curta e tão simples, foi musicada com certeza por um maestro italiano e o actor se esqueceu da melodia, mantendo-lhe apenas, inexplicàvelmente, O «tempo» na recitação. Não se representa pior em parte nenhuma do mundo.
Mariana Rey Colaço Robles Monteiro, a estreante, não chega assim a perceber -se se tem talento ou não. Tem boa figura, uma bonita voz, braços lindos, e, aparte uns deslises lisboetas de pronúncia sem importância de maior parece ter as condições necessárias para ser uma actriz: máscara móvel, olhos expressivos. facilidade de modelação e de gesto. Mas, coitada, puseram-na a gritar desde o princípio até ao fim e ensinaram-lhe coisas tais que tudo isso não nos lembra senão pelo esforço de a observar. Como todos os seus colegas, quando diz céu aponta para cima, terra para baixo, testa põe lá a mão, braços mostra-os, coração bate no peito. Como todos os seus colegas (excepto Samuel Diniz que não sei porque preceito tira sistemàticamente as vírgulas do lugar conveniente), abaixa a voz quando diz triste, ergue-a quando diz alegria, comove-a quando diz ternura, leva as costas da mão aos olhos quando pronuncia treme licantemente lágrimas, e pausa por um ritmo exacto e permanente as frases sobre as frases. Como todos os seus colegas e como os seus mestres representa mal e se, apesar de tudo, merece um elogio, é porque não representa pior e apenas se estreou agora. Não será possível salvar esta rapariga e mandá-la a Londres ver o Gilgud ou o Olivier, a Paris ver representar o Jouvet, se ela quer, como parece, ser uma actriz? Ou não haverá esperança nem possibilidade de fazer ao teatro (refiro-me aos actores e ao modo de representar) a obra de asseio que se soube fazer no tocante a cenário, indumentária e encenação?
Que a Antígona de Júlio Dantas de corre num arranjo cenográfico de Lucien Donnat francamente de aplaudir. E aplaudir, acreditem os actores e os empresários, é o que mais apetece quando se vai ao teatro.
António Pedro
in Mundo Literário, nº 1, 11 de Maio de 1946