Eduardo Lourenço – “mestre da dúvida” e da interrogação permanente
“Gostaria de viver num convento onde o superior fosse Álvaro de Campos”
“No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é Heterodoxia”
Eduardo Lourenço
Assinala-se a 23 de Maio o centenário de nascimento de Eduardo Lourenço. A Fundação Calouste Gulbenkian já lhe prestou merecida homenagem, ao organizar um colóquio no dia 28 de Março. Outras iniciativas estão programadas, na cidade da Guarda, onde o Congresso Leituras de Eduardo Lourenço vai revisitar as diferentes facetas da vasta obra daquele que a si próprio se intitulava um “místico sem fé”, ou – atrevemo-nos a dizer – alguém que é portador de uma fé heterodoxa.
Eduardo Lourenço de Faria (doravante designado por EL) nasceu em S. Pedro do Rio Seco, pequena aldeia do concelho de Almeida, distrito da Guarda. Fez a escola primária na terra natal e os estudos secundários na Guarda. Mais tarde rumaria à Universidade Coimbra, onde encontra um ambiente propício à reflexão cultural, concluindo o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Nos anos 50 foi leitor de português em universidades alemãs e francesas, acabando por se fixar primeiro em Nice e depois em Vence (sul de França) como professor de Filosofia. Não é fácil classificar uma personalidade tão rica e multifacetada, alguém que foi ao mesmo tempo filósofo, pensador, crítico literário e ensaísta penetrante, ensaísmo esse entendido enquanto experiência do questionamento e de busca de sentido capazes de rasgar clareiras para domínios inexplorados.
No plano da filosofia merecem destaque dois dos seus primeiros e mais citados livros, Heterodoxia I (1949) e II (1967) e ainda os estudos sobre António Sérgio ou sobre a filosofia em Antero de Quental, reunidos em Antero ou a Noite Intacta (2007). Sobre Heterodoxia I, obra em que o então jovem EL assume pela primeira vez a sua condição de pensador solitário, é ele mesmo que nos esclarece ter o livro nascido do seu desejo de se demarcar das duas ortodoxias que por essa altura monopolizavam os meios intelectuais portugueses: o catolicismo e o marxismo. Era esta a polarização fundamental da vida cultural portuguesa nos anos 40. Essa dicotomia, tantas vezes extremada no debate político, era para EL a responsável pelo estreitar do caminho onde deviam circular e fluir livremente a cultura e o pensamento.
Chegou a confessar, numa entrevista, que este livro lhe provocou vários dissabores entre os antigos camaradas já entretanto ligados ao núcleo coimbrão da geração neo-realista, “uma audácia” que o deixou “isolado” e “sem família”. O heterodoxo que recusou tanto a leitura racional e positiva dos acontecimentos como a tentação de explicar o mundo que nos rodeia com recurso exclusivo aos mitos, disse em Heterodoxia I, no prólogo, que “a heterodoxia é a consciência absoluta da pluralidade histórica das ortodoxias” (p. 6). Anos mais tarde, no segundo prólogo sobre o espírito da heterodoxia, empenhou-.se em clarificar – e de algum modo também corrigir – ainda mais o conceito: “Recusar a verdade dos outros ou o espírito com que eles a vivem não é o mesmo que encontrar a sua” (Heterodoxia II, p. 90). EL assumiu que em 1949 teria cometido o equívoco de pensar que um ortodoxo não pode ser um homem livre e que a heterodoxia seria a única forma de exercitar a liberdade. Irresistível não pensar no poeta Joaquim Namorado, com quem privou em Coimbra e de quem foi colega nas páginas da Vértice, que um dia proclamou aos quatro ventos que “só a ortodoxia é uma aventura”.
Nas décadas de 50 e 60 avulta sobretudo o crítico literário, embora já na anterior apareçam as primeiras recensões de EL em revistas como Vértice ou Seara Nova. Em 1955 dá a estampa O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações, inaugurando com esse e outros textos sobre poesia, no dizer de Miguel Real, “uma crítica de tipo novo” em Portugal. A consagração desta sua faceta de crítico literário – depois de abandonar, quase por completo, a reflexão filosófica – acontece com a publicação do célebre e polémico ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo português”? sedimentada, anos depois, com a edição de Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (1968), as fulgurantes análises de Fernando Pessoa Revisitado (1973) ou Fernando, Rei da Nossa Baviera (1986), Tempo e Poesia (1974), Poesia e Metafísica (1983) ou O Canto do Signo, Existência e Literatura (1994).
O ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo português?” foi publicado inicialmente em 1960, no suplemento quinzenal Cultura e Arte do jornal O Comércio do Porto e tornou-se desde então um texto incontornável, apesar da poda feita pela censura, nomeadamente com a supressão de referências a Adolfo Casais Monteiro. Num tempo pautado pela quase inexistência de sentido crítico no árido panorama das letras em Portugal, a ninguém foi indiferente esta publicação, que acabou por merecer o aplauso de uns e o melindre de outros – sobretudo os presencistas convictos – e ateou polémicas cujas labaredas ainda perduram. Este ensaio – que Miguel Real considera o “artigo de crítica literária possivelmente mais famoso do século XX em Portugal” – contra as ideias feitas e uma certa unanimidade instalada na crítica literária da época, não podia deixar indiferentes os que sustentavam ser o espírito da Presença o continuador cultural do Orpheu e não a contra-revolução do modernismo, como sustenta EL
O texto acabaria por gerar uma fecunda controvérsia, que se prolongou até aos nossos dias. De entre os presencistas mais convictos, aquele que se terá sentido mais agredido com a tese da contra-revolução do modernismo foi João Gaspar Simões, o “guarda-mor das nossas letras”, como lhe chama EL (Tempo e Poesia, p. 19). Ao lado de EL colocou-se, entre outros, Jorge de Sena, que apesar de não subscrever na íntegra a tese da contra-revolução, considera não existir continuidade na poesia dos dois modernismos.
O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português (1978) é, porventura, o seu mais conhecido e celebrado livro. Nele encontramos ensaios que traçam o retrato da mentalidade portuguesa e onde se procura uma resposta sobre que é, afinal, isto de se ser português. Num desses ensaios, escreve: “a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses fazem de si mesmos” (p. 17). Uma das obras fundamentais do século XX sobre a nossa identidade, que ajudou a outorgar-lhe o estatuto de incontornável teórico da cultura portuguesa, reconhecido nacional e internacionalmente. Grande parte da sua vida foi passada a sondar os mitos da nossa cultura, nomeadamente o diálogo que os mitos estabelecem com as várias épocas. O ensaio principal desta obra foi escrito para a revista Raiz e Utopia (n.º 5-6, 1978).
Para lá das facetas já aqui abordadas, há também o EL do empenhamento político. Data de 1958 o primeiro texto onde manifesta a sua oposição ao Estado Novo, com o título “O Exército ou a Cortina da Ordem”. Nos dois anos seguintes volta a publicar em jornais brasileiros textos de carácter político e a favor da instauração de um regime democrático em Portugal. A seguir à revolução de Abril de 1974, quando a liberdade se instala com a queda do império, tenta compreender e pensar Portugal em textos de intervenção política dispersos por jornais e revistas. A residir em França, pensou com olhar distanciado o complexo e contraditório processo revolucionário que haveria de nos conduzir à democracia e à integração na União Europeia. Derramou esse olhar distanciado em páginas da imprensa, mas também em livros como Os Militares e o Poder, Ocasionais, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, O Complexo de Marx, Do Colonialismo como Nosso Impensado, O Fascismo Nunca Existiu e Nós e a Europa, ou as duas razões.
Finalmente, encontramos também em EL a vincada faceta do esteta. Ora em textos publicados em O Tempo e o Modo e Colóquio/Artes ou reflectida em livros como O Espelho Imaginário – Pintura, Anti-Pintura, Não Pintura (1961), Tempo da Música, Música do Tempo (2012), Da Pintura (2017) e Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do nosso Sobrenatural, uma recolha de ensaios, artigos, recensões, notas de agenda e manuscritos que se encontravam dispersos, com títulos como estes: “Edgar Morin ou o Homem como Cinema”, “Marilyn no Céu”, “Charlot, Mito Ambíguo ou Mito Nefasto?”, “Bergman e a Entropia”, “Insólito João de Deus”, ou “A Paixão (Portuguesa) segundo Manoel de Oliveira”.
Estamos a falar de alguém que sempre insistiu em querer compreender as imagens que os portugueses foram historicamente construindo de si mesmos, o país que somos, o “navio-nação a que chamamos Portugal”, mas com uma visão desencantada e pessimista dos tempos que aí vêm, como transparece da leitura de Nós como Futuro: ao afirmar que “nenhuma barca europeia é mais carregada de passado do que a nossa” e que “simbolicamente nenhum povo vive no passado como Portugal”, EL quer-nos dizer que Portugal vive o presente em função de imagens do passado, imagens essas construídas com a finalidade de perpetuar as ortodoxias reinantes. E será essa nossa maneira tão peculiar de incorporar e viver o passado que acaba por constituir “um sério obstáculo para conceber o futuro”. Um futuro de Portugal que foi desde cedo “o lá fora, a distância nossa ou alheia”.
O consabido pessimismo deste dissidente da sua própria geração e “fascinado escalpelizador da nossa pequenez” (Eugénio Lisboa dixit) também é reconhecível em O Esplendor do Caos, ao sublinhar que “assistimos, sem nenhuma espécie de espanto e ainda menos pânico intelectual, ao sucesso e à glorificação do conceito de caos”. Ou quando afirma: “Nós incorporámos o inferno no quotidiano do mais fascinante e atroz dos séculos (…) num mundo onde o horror se tornou invisível, consumido como pura virtualidade”. José Gil e Fernando Catroga, dois especialistas em história das ideias, classificam este recuo do inteligível, esta forma de EL perscrutar o futuro, de “ensaísmo trágico”. Um olhar trágico sobre a época que lhe foi dado viver, sobre o desencanto do mundo patente no desmoronar da racionalidade programática, em que se assiste ao enfraquecimento da ideia religiosa e metafísica da verdade.
Galardoado com os Prémios Camões e Pessoa, dois dos poetas que mais admirava, consagrado à esquerda e à direita, o autor de O Labirinto da Saudade não morria de amores por um certo anel de ferro do unanimismo que se foi apertando – seguramente com alguns equívocos e alguma ignorância da sua obra à mistura – em torno do seu nome. Aquando do seu desaparecimento o Jornal de Letras dedicou-lhe um número especial onde praticamente todos os textos afinavam pelo diapasão do consenso laudatório. Bastou um texto não alinhado, saído da pena de Eugénio Lisboa, para o verniz estalar. Sentindo-se visado pelas farpas lançadas no editorial, bateu com a porta e acrescentou, na carta de despedida: “José Carlos de Vasconcelos, quero comunicar-lhe que não volto a colaborar no JL. Enquanto o fiz, procurei sempre dizer (…) aquilo que penso: com admiração, quando ela é devida, mas sem idolatrias próprias de ditaduras de terceiro mundo”.
No essencial, o texto de Eugénio Lisboa limitava-se a assinalar uma evidência na prosa de EL: um certo culto da obscuridade, tributário da moderna escola francesa com a qual estava familiarizado. A isso contrapunha Eugénio Lisboa autores como António Sérgio ou José Régio, que nos oferecem “uma prosa limpa, intrepidamente descascada, alheia a floretti e a maneirismos gongorizantes, que só servem para atravancar o fluir asseado das ideias”. Esta crítica em nada abala a consideração que EL lhe merece, apesar de saberemos que não partilha algumas das suas teses. Essa consideração intelectual está bem patente num texto publicado em Maio de 1984 na revista Prelo, onde podemos ler, a propósito de Heterodoxia I, que “aquele jovem inquieto, inteligente e autónomo” teve o mérito de “tentar rasgar a cortina triunfalista e monolítica dos asfixiantes anos 40 (…) os monolíticos centros de decisão que faziam e desfaziam as reputações, em função de bom comportamento ideológico do candidato à glória” (p. 23).
Não será temerário afirmar que talvez ninguém como EL tenha construído uma obra ensaística tão livre de imposições, que tenha abalado tanto, nas décadas de 60 e 70, as consciências da crítica literária portuguesa. Muito poucos terão pensado, de forma tão arguta e profunda, a cultura portuguesa da segunda metade do século XX, cruzando os planos da literatura, da filosofia, do simbólico e do mítico. A vasta e sólida cultura que connosco partilhou foi sempre mais um cais de partida que um ponto de chegada. Ninguém como ele terá ajudado a desconstruir o discurso ortodoxo que é o estrume de todos os mitos, apesar de saber que os manes tutelares da certeza se ofendem com a dúvida e não deixariam de descarregar sobre ele a sua fúria, apostados que sempre estiveram em expurgar heterodoxias.
Ora o debate sobre a vasta obra que EL nos legou, profunda, complexa e provocatória, nada terá a ganhar com o unanimismo acrítico das claques aquiescentes que hoje o veneram. Do que verdadeiramente a sua obra anda carecida não é da sociedade de corte que a idolatra nos habituais espaços de hagiografia. É de crítica construtiva. É que sobre ela recaia a atenção dos que de algum modo o continuam, fascinados com a dúvida e a interrogação permanente.
Carlos Braga
www.carlosbraga.pt