Embora Mazo de la Roche não deva ser uma desconhecida para alguns sectores do público português, já familiarizados com a sua celebridade, através do original inglês ou de traduções nas mais diversas línguas, nomeadamente a francesa, a publicação em Portugal da primeira tradução de um seu romance implica uma apresentação.
Não há, pode dizer-se, colecção de romances, em qualquer parte do mundo, que não inclua pelo menos uma obra sua: Jalna. É certo que isso não provaria uma excelsa qualidade da romancista ou desse romance em particular, dado que, nessas colecções, figuram inúmeras obras célebres mas inferiores ou tidas por inferiores pela crítica especializada. Não é este o caso de Mazo de la Roche que, se conquistou aquele grande público que lê sem discriminação e admira mais o que é mais fácil e agradável, igualmente conquistou – o que é apanágio de muito poucos dos operosos fabricantes de romances para passar-se o tempo – o respeito dos seus confrades e o da crítica.
Na sua obra muito vasta, destacam-se, e ascendem já a uma dúzia, os romances que constituem a série de Jalna, ou, segundo o titulo comum que a autora lhes atribuiu, as crónicas da familia Whiteoaks. O êxito dessas crónicas, a notoriedade de Jalna (a casa que os Whiteoaks construíram, quando emigraram, há um século, para o Canadá…) levaram Mazo de la Roche a tentar o teatro com uma peça Os Whiteoaks.
Os romances de Jalna não foram escritos todos por ordem cronológica e, apesar de se circunscreverem ao circulo de uma família, cujas vicissitudes ao longo de um século escolhem para seus temas, são tão independentes um dos outros como, por exemplo, os romances enquadrados por Balzac na “Comédie Humaine” ou por Zola em “Les Rougon-Macquart”. Com efeito, as gradações de tempo e de ambiente ou a selecção das sucessivas personagens, de uns livros para os outros, não têm a conexão romanesca que ordena inexoravelmente os volumes de The Forsyte Saga, de John Galsworthy, ou de Les Thibault, de Roger Martin du Gard, que serão sem dúvida (se esquecermos a obra-prima de Thomas Mann, Os Buddenbrooks, porque é um só romance) as famílias mais ilustres da ficção contemporânea.
Nem estilisticamente, nem em profundidade e ressonância os Whiteoaks podem ombrear com os Forsytes ou os Thibaults. De resto, e é essa uma das virtudes da sua criadora, não têm a mínima pretensão de ombrear. Assim como Mazo de la Roche colhe o principal motivo do seu prestígio no facto de ser um dos mais excepcionais romancistas medianos da actualidade, com uma habilíssima ou natural consciência dos seus próprios limites e dos limites do público mediano (e quem não é mediano na maior parte dos mo- mentos sinceros da sua vida?), assim os Whiteoaks e os seus amigos são pessoas perfeitamente comuns, às quais não acontece nada de verdadeiramente extraordinário. São pessoas bem instaladas na vida, vivendo sem complicações psicológicas num pais novo e rico, que se desenvolve pacificamente e quase sem história própria, que é o Canada de Mazo de la Roche. Talvez mesmo as suas infelicidades sejam, mais propriamente, contrariedades apenas, e eles tenham o defeito de ser um pouco mais felizes e mais seguros na vida que o comum dos mortais burgueses, de cuja comunidade são membros proeminentes. Mas essa proeminência, que não resulta de peripécias dramàticamente apaixonantes, e é feita só de segurança e de doméstica e pacata independência, aliada a uma certa franqueza na banalidade dos gostos e dos sentimentos, não é precisamente o sonho que a grande maioria humana deseja alcançar, sem o saber, julgando às vezes que deseja mais?
Ora a discreta malícia e a singela e despreconceituosa – ironia, com que Mazo de la Roche se empenha em confinar-se e às suas personagens quer nos ambientes e nas ideologias dominantes das sucessivas épocas que retrata, quer naquela benevolência que nos permite, do alto dos nossos preconceitos, aceitar os das gerações passadas, essa malicia e essa ironia é que são o segredo do êxito e da consagração da romancista canadiana, ao transpor para a ficção a vida da sua pátria, em quadros sucessivos, na moldura restrita de uma família que, de certo modo, será a sua própria (que, a mais dos Whiteoaks, é também de origem francesa), pois que há certo paralelismo entre a história dos Whiteoaks e a das origens e situação social de Mazo de la Roche.
Esse segredo é, afinal, bem simples: o de dar verosimilhança, vivacidade e graciosidade narrativa aquela mesma sentimental receita de inverosimilhança, moleza e pretensa seriedade, com que são invariavelmente escritos os romances tidos como para passarem o tempo, principalmente as meninas.
The Building of Jalna – a construção da casa de Jalna-é, cronològicamente, o primeiro romance da série. Natural seria, pois, escolhê-lo para apresentação, em Portugal, de Mazo de la Roche, dos Whiteoaks e da pitoresca falange de personagens que os rodeiam. Estamos em 1850. Adeline Whiteoak, que será a portentosa matriarca dos romances situados ulteriormente na sua vida, é apenas a jovem e desenvolta esposa do capitão Whiteoak, com o qual casou na India. Agora, na Inglaterra, Adeline… Mas isto é exactamente o começo do romance.
Tenha cautela o leitor, neste limiar: pois que, divertido por um diálogo modelar no seu malicioso humor, e contagiado por uma inabalável simplicidade que tem de convencional só o que toda a gente aprecia, nunca mais quererá, à semelhança do que tem sucedido pelo mundo, separar-se dos Whiteoaks.
A Casa de Jalna de Mazo de la Roche
Tradução e Prefácio de Jorge de Sena