Quando se folheia uma qualquer história da literatura universal, um nome há que sempre aparece colocado na primeira fila dos autores alemães mais importantes: é o de E.T.A. Hoffmann.
Tido durante imenso tempo pelo melhor contista do seu pais, exerceu, de facto, uma influência assinalável sobre escritores de outras nacionalidades, como o americano Edgar Allan Poe e o francês Charles Baudelaire.
George Sand, uma grande dama das Letras francesas, referiu-se-lhe, muito justamente, nestes termos: “Hoffmann nada concebeu ao acaso; apenas criou entes sobrenaturais depois de incluir na realidade seres muito bem observados; apenas fez intervir o diabo nos seus êxtases como um princípio filosófico. Pensando nisso com maior atenção do que é vulgar, encontra-se, na realidade mais simples, na observação mais puramente física, o princípio de todos os seus desenvolvimentos poéticos.
Também o apreciado romancista austríaco Stefan Zweig quis deixar expresso o seu testemunho: “Ha na sua obra algo de doloroso, a transformação da voz em zombaria e em sofrimento, e mesmo nos contos que só desejam ser serenidade ou que descrevem orgulhosamente estranhas invenções, perpassa de súbito o tom cortante e inolvidável de um instrumento partido. Com efeito, E.T.A. Hoffmann foi sempre um instrumento maravilhoso com uma pequena ranhura.”
Depois de apresentado assim a traços largos, vejamos melhor, agora, quem foi o autor desta Irmã Monika, que conta e ensina…
Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (o nome Amadeus acrescentou-o ele em homenagem ao seu ídolo Wolfgang Amadeus Mozart!) nasceu em Königsberg, Prússia Oriental, e faleceu em Berlim. As datas limites foram 24 de Janeiro de 1776 e 25 de Junho de 1882. Entre elas situou-se uma vida tormentosa, cujos acontecimentos principais serão recordados a seguir.
Embora sentindo, desde muito novo, vocação para a literatura, a música e a pintura, Hoffmann viu-se destinado pela família à carreira judiciária; estudou, pois, jurisprudência na sua cidade natal.
Em 1798 acompanhou um tio, conselheiro secreto do Tribunal Superior, a Berlim, onde permaneceu dois anos e enfrentou com êxito os exames de admissão a altos cargos na administração judiciária, sendo enviado para Posen, na Polónia, como assessor do governo. Aqui conheceu e desposou uma polaca católica, Maria Michaelina Rorer.
O desempenho do seu cargo envolvia, porém, muitas tentações e perigos para um homem novo com dinheiro e poder, pois Posen era uma terra onde a ociosidade e a bebida constituíam um hábito enraizado nos costumes. Hoffmann não pode, nem quis, resistir e a sua estada foi bruscamente interrompida: é que estalara um escândalo provocado por algumas das suas caricaturas.
Transferido para a cidadezinha de Plock, trabalhou activamente durante dois anos no escritório, compôs música profana e sagrada e escreveu os primeiros textos literários.
A influência de amigos acabaria por conseguir colocá-lo em Varsóvia onde, entre 1804 e 1807, levou uma vida ocupadíssima com o desempenho dos deveres profissionais e a composição de música de câmara e de operas. A invasão da cidade pelas tropas napoleónicas pôs, no entanto, termo a esta existência ideal propicia dora de inspiração artística.
Em 1807, após muitas provações, Hoffmann encontra-se de novo em Berlim, e aí passa o ano mais desgraçado da sua vida, um ano cheio de tentativas falhadas e de miséria, antes de concretizar o sonho de viver para a Arte.
Algum tempo depois, chamado a Bamberg pelo seu amigo Holbein, que ali dirigia o teatro de ópera, fez-se arquitecto, maquinista, chefe de orquestra e compositor, levando uma vida que ele próprio considerou a imagem da felicidade. Em 1813, reuniu seis contos seus e publicou-os no volume Phantasiestücke in Callots Manier (Fantasias à maneira de Callot).
Este mesmo período paradisíaco viria, porém, a ser ensombrado pelo amor por Julia Marrk, sua aluna de canto, amor que seria evocado veladamente na fantasia Die Abenteuer der Sylvesternacht (As Aventuras da Noite de S. Silvestre).
Os derradeiros anos passados em Bamberg revelaram-se novamente incertos e povoados de aflitivas carências, situação a que não foi alheia a vida desregrada que Hoffmann continuara a levar.
Um outro amigo, Hippel, lograria convencê-lo a regressar a Berlim e a retomar a antiga carreira de funcionário judicial. A proposta foi aceite sob condição de ficar com tempo livre para dedicar-se às artes.
Deu, então, provas de uma actividade prodigiosa, publicando sucessivamente Don Juan (1814), Kreisleriana (1814), Der Golden Topf (1814, O Vaso de Oiro), Nussknacker und Mäusekönig (1816, Que bra nozes e o Rei das Ratazanas), Die Elixiere des Teufels (1816, Elixires do Diabo), Das fremde Kind (1817, A Criança Estrangeira), Nachtstücke in Callots Manier (1817, Nocturnos à Maneira de Callot), Klein Zaches gennant Zinnober (1818, O Pequeno Zacarias), Das Fräulein von Scudéri (1819, A Menina de Scuderi), Die Bergwerke zu Falun (1819, As Minas de Falun), Die Serapionsbrüder (1819-21, Os Irmãos Serapião), Prinzessin Brambilla. Ein Capriccio nach J. Callot (1820, A Princesa Brambilla) e Lebensansichtendes Katers Murr… (1822, O Gato Murr). Um periodo tão fecundo foi, todavia, também acompanhado por desregramentos vários e noites perdidas à mesa das tabernas.
Agora célebre e solicitado por todos os editores de Almanaques, passou os seus três últimos anos de vida torturado por uma doença na espinal medula, mas sempre a ditar contos, a receber amigos e a lutar tenaz mente contra a morte invencível.
Próximo do fim, pode ainda entregar ao seu melhor amigo um elevado número de escritos obscenos… que viriam a ser queimados, cuidadosa e lentamente (três meses!) por um tal conselheiro Hitzig.
Estamos, pois, na presença não só de um grande escritor mas também de um homem de Letras que não desdenhou abordar a literatura erótica. Esta sua atitude foi, aliás, comum a muitos outros autores de nomeada.
Em todos eles se reflecte a tendência saudável de orientar, embora a título transitório, a sua inspiração criadora no sentido de obras que colidam frontalmente com os parâmetros e preconceitos limitativos da literatura séria”, mesmo quando rotulada de naturalista.
Um tal atrevimento é quase sempre cometido anonimamente ou sob pseudónimo, encarregando-se depois os sábios exegetas de discutir entre si as caracteristicas dos textos para os atribuírem a determinado escritor. Mas, mesmo quando a identidade deste não oferece margem para dúvidas, os zelosos organizadores das respectivas Obras Completas” ignoram so branceiramente tais textos…
Eis a situação exacta de Hoffmann e da sua Irma Monika, publicada pela primeira em nome de autor, em 1815. Trata-se de um livro despretencioso, no qual a personagem principal, Monika, recorda a um grupo de freiras os acontecimentos lúbricos que a fizeram desprezar os prazeres falsos” deste mundo, levando-a a refugiar-se no remanso de um convento. É certo que a sua consciência e o seu corpo deram provas de admirável estoicismo e acomodação aos tais prazeres desprezíveis, mas não é menos certo que tão sacrificada aprendizagem veio a repercutir-se beneficamente nos ensinamentos mais tarde propiciados às suas irmãs de voto… Posto, assim, de parte qualquer mal-entendido, resta esclarecer que Monika foi considerada, a justo título, a mais santa de todas as freiras do convento.
De textura literária muito simples, mas de situações escabrosas deveras complicadas, este romance foi atribuído a Hoffmann por Gustav Gugitz, em 1910, e deu origem a uma tremenda guerra literária, pois logo surgiu quem pusesse em causa tal paternidade.
Entre os opositores de Gugitz salientou-se o Dr. Paul Englisch, de Estugarda, que, na sua História da Literatura Erótica (1927), garantiu: “O romance em si testemunha bem que E.T. A. Hoffmann não pode ter participado na sua criação. Embora seja muitas vezes arrastado pela fantasia, os seus romances possuem uma unidade que não se encontra em Irmã Monika. O estilo de Hoffmann nunca é chato, rebuscado, nem empolado, enquanto se procuraria inutilmente em Irmã Monika uma ideia digna de ser anotada.”
Tão lapidar opinião viu-se, contudo, cada vez mais desacompanhada e, na verdade, foi-se observando uma persistência crescente dos seus adversários, cuja vitória final surgiu quando Rudolf Frank invocou diversas razões justificativas, as quais o Dr. Herbert Lewandowski resumiu assim: “1.a O livro foi escrito na Posnânia, onde Hoffmann era então assessor e onde, segundo as suas próprias palavras, aprendia a escrever notas e brejeirices’. Foi publicado pela editora Kühn em Poznan. 2. Rudolf Frank conhece perfeitamente o estilo de Hoffmann, de quem fez editar as obras em onze tomos. Escreveu um Glossário de Monika, contendo 2500 palavras e arranjos de frases, no qual compara todas as obras conhecidas de Hoffmann com as suas concordâncias e semelhanças. 3.a Antes de morrer, Hoffmann entregou um legado literário ao seu melhor amigo, o actor Ludwig Devrient. Por esta via obteve-se um número elevado de escritos obscenos e o conselheiro Hitzig pretende haver necessitado de três meses completos para queimar os manuscritos brejeiros, sem dúvida para ter tempo de lê-los. 4. O químico Ernst August Hauser desposara uma descendente de Devrient e mostrou a um admirador de Hoffmann, Jaspert, director da editora Reimar Hobbing, um armário cheio de manuscritos de Hoffmann, entre os quais o original de Irmã Monika, escrito pela mão de Hoffmann.Está bem de ver que a decisão da controvérsia -o autor de Irmã Monika é, de facto, um importantíssimo escritor pode não influir decisivamente no agrado oferecido pela leitura do romance, mas contribui, sem duvida, para provar mais uma vez que Literatura “séria” não anda tão dissociada da “outra” como pretendem certas ideias puritanas…
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