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Maria Lúcia Lepecki sobre Mau Tempo no Canal

Tentar enquadrar Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, num tipo específico de romance, num «rótulos, é relativamente difícil, dada a variedade de assuntos que afloram, com maior ou menor importância, ao longo do livro. É facto que se faz aqui a apresentação, a análise e até mesmo a crítica de uma realidade social constituída, de um lado, pelo que se poderia chamar o «macrocontexto» insulano dos Açores e, de outro, pelo «microcontexto constituído pelas duas facções económicas e financeiras que se opõem: os Clarks e os Garcias. Para além disto, pode considerar-se que a própria paisagem dos lugares onde se passa a acção é essencial ao desenvolvimento do romance, visto como há uma especificidade insulana que em certa medida envolve e por vezes até explica as personagens e os conflitos. Tornam-se, pois, essenciais as descrições de paisagem física – desde o clima até pormenores topográficos e os estudos psicológicos. Ambos os elementos contribuem para tipificar o ilhéu, inserido numa determinada realidade física e psicológica. A partir de paisagem e psicologia, o romance abrange linhas mais vastas de interesse, colocando os problemas, já referidos, de natureza económica e sociológica.

A análise e a crítica da realidade socioeconómica, o retrato de uma mentalidade e de uma psicologia, a apresentação de um espaço físico são complementados por outro centro de interesse: um conflito amoroso complexo, vivido pela protagonista, Margarida Clark Dulmo. Assim, temos um romance construído em duas direcções: uma, horizontal, em que se abrange a paisagem e a colectividade. Outra, a vertical, em que se penetra o mundo interior de uma personagem, ela mesma simbólica de um tempo e de uma situação. Estas duas perspectivas do romance têm sua correspondência na própria estrutura da pro- em dimensão vertical (o protagonista, que também vive em conflito amoroso e o relacionamento afectivo com a família) e em dimensão horizontal (por estar integrada num drama colectivo, de que ela é uma peça, como são peças os criados, ou os Garcias ou os próprios Clarks e Dulmos). E, entretanto, exclusivamente através de Margarida que se tem uma visão crítica e um juízo de valor sobre a totalidade do mundo que a rodeia. Margarida é, pois, o que se chama uma personagem complexa, ou «plástica», visto como, embora se mantenha até certo ponto «peça» de um jogo, conserva também basicamente uma individualidade que a destaca do restante das personagens.

(In Colóquio/Letras, n.º n.º 4, 4, Dezembro de 1971, pp. 44- -49. Reproduzido in Criticas sobre Vitorino Nemésio, ed. cit., pp. 167-175.)

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